“A sensibilidade é hoje o campo de batalha político”
Entrevista com Franco Berardi (Bifo), publicada em 29/01/2011, no periódico espanhol Público. Tradução do blog Boca do Mangue.
Franco Berardi (Bifo) é filósofo,
escritor e teórico dos meios de comunicação. Envolvido nos movimentos
sociais autônomos nos anos setenta, preconizou nos anos oitenta a futura
explosão da Rede como vasto fenômeno social e cultural e fundou em 2005
a primeira “televisão de rua” na Itália. Em espanhol publicou “La fábrica de la infelicidad” ou “El sabio, el mercader y el guerrero”. Lançou recentemente o sítio de comunicação th-rough.eu, uma plataforma comunicativa trans-européia onde se encontra política, filosofia e crítica literária e de arte.
A primeira entrevista desta seção,
faz já dois anos, que fizemos com ele. Nela falamos sobre a crise que
recém começava e Bifo apontou três chaves de orientação teórica e
prática: em primeiro lugar, não estamos diante de uma crise puramente
financeira, mas de um modelo inteiro de civilização; em segundo lugar, o
desenlace do cataclismo econômico é incerto: pode derivar para um
“salve-se quem puder” generalizado, assim como para a criação de uma
nova cultura de solidariedade e de partilha; por último, a dissolução da
esquerda européia é um dado positivo porque nos empurra a pensar e
experimentar fora de um marco conceitual e prático que pertence ao
século XX. Dois anos depois retomamos a conversa com Bifo sobre o mesmo
assunto.
PUBLICO: O que tem se passado nos últimos anos?
BIFO: Sobretudo duas coisas: a esperança
Obama se dissolveu e explodiu a crise européia. Uma nova lógica se
instalou no coração da vida européia a partir da crise financeira grega.
Merkel, Sarkozy e Trichet decidiram que a sociedade européia deve
sacrificar seu nível de vida atual, o sistema de educação pública, as
pensões, sua civilização inteira para poder pagar as dívidas acumuladas
pela elite financeira.
PUBLICO: E o que não tem acontecido? Refiro-me à ausência das grandes lutas sociais que todos esperávamos. Como se explica isso?
BIFO: Durante os últimos dez anos, a
precarização geral da vida não só tem fragmentado o tempo de vida e
reduzido o salário, mas sobretudo instalou na vida social o domínio do
espírito competitivo, com suas conseqüências de agressividade,
isolamento e solidão nas pessoas, sobretudo entre os jovens. Os efeitos
sobre a sensibilidade são devastadores e estão à vista de todos:
depressão de massa, crise de pânico, doenças do vazio etc. Essa
des-empatia generalizada explica o atual “salve-se quem puder” diante da
crise.
PUBLICO: Você vê alguma saída?
BIFO: Temo que a catástrofe presente não
tenha nenhuma solução, a barbárie é a nova ordem social européia. Isso
não se pode mudar, podemos apenas desertar. Temos que esquecer a palavra
democracia porque não tem nenhuma possibilidade de restaurá-la e, em
seu lugar, escrever a palavra autonomia. Autonomia das forças da
produção técnica, cultural, criativa: o que eu chamo “cognitariado”.
Autonomia significa abandono e esvaziamento do imaginário e dos lugares
do trabalho, do consumo, da competência, da acumulação e do crescimento.
E a criação de um novo espaço mental e social separado definitivamente
do econômico. Esse é para mim o sentido profundo ao qual apontam as
primeiras mobilizações contra a crise na Europa (Londres, Roma etc).
PUBLICO: Mas os estudantes tem saído à rua para protestar sobretudo contra o desmantelamento do sistema educativo.
BIFO: Sem dúvida, os estudantes não podem
tolerar o fomento organizado da ignorância nos países europeus. Mas eu
vejo, além disso, outro elemento a se levar em conta na mobilização
furiosa e criativa do mês de dezembro: uma tentativa de re-ativação da
dimensão corpórea, física, desejante e sensível das pessoas que compõem a
classe cognitária européia. Ou seja, os milhões de estudantes,
pesquisadores, engenheiros, analistas de sistema, jornalistas, poetas e
artistas que constituem esse cérebro coletivo que é a força de produção
crucial e decisiva no tempo presente.
PÚBLICO: Você dá muita ênfase à questão da sensibilidade.
BIFO: Sensibilidade é a capacidade de
entender sinais que não são verbais, nem verbalizáveis. É a faculdade de
discernir o indiscernível, aquilo que é demasiado sutil para ser
digitalizado. Tem sido sempre o fator primário da empatia: a compreensão
entre os seres humanos sempre se dá, em primeiro lugar, no nível
epidérmico. E aí está, hoje, o campo de batalha político. A
intensificação do ritmo de exploração dos cérebros tem posto em colapso
nossa sensibilidade, por isso a insurreição que vem será antes de tudo
uma revolta dos corpos. Penso em um novo tipo de açao política capaz de
tocar a esfera profunda da sensibilidade mesclando arte, ativismo e
terapia.
PUBLICO: Por que a arte?
BIFO: Tem uma expressão artística
importante na última década que se dedica à compreensão da fenomenologia
do sofrimento psíquico. Penso em escritores como Jonathan Franzen e
Miranda July, em vídeoartistas como Lijsa Ahtila ou em cineastas como
Gus Vant Sant e Kim Ki-Duk. Mas a arte por si só não consegue modificar a
realidade, apenas conceitualizá-la e denunciá-la. A arte deve
mesclar-se com a política e a política com a terapia.
PUBLICO: Terapia e política, um estranho par, não?
BIFO: Quando o primeiro efeito da
exploração capitalista do trabalho cognitivo é o esgotamento nervoso e o
sofrimento psíquico, a ação social tem que se propor, antes de mais
nada, como terapia mental e relacional. Mas quando falo de terapia não
me refiro a uma técnica que reintegre o indivíduo exausto à normalidade
do consumo compulsivo e à competição econômica, mas à prática que
reativa a sensibilidade e a empatia. A terapia que proponho não é outra
coisa que revolta e solidariedade, o prazer dos corpos mesclando-se com
outros corpos. As mobilizações dezembro em Londres e Roma tem sido as
melhores ações auto-terapeuticas que se possa imaginar. Melhor que um
milhão de psicanalistas.
PUBLICO: Para encerrar, peço umas palavras sobre a situação italiana.
BIFO: Dois processos de
barbarização se somam na Itália. Por um lado, um grupo de criminosos
notórios, de fascistas mafiosos e racistas estão desmontando a estrutura
institucional e moral do país. E por outro, tem uma aplicação
sistemática das diretrizes neoliberais e monetaristas da União Européia.
Não tem solução italiana para a situação italiana. Mas, eu já não sou
italiano. Os estudantes italianos já não são italianos, muitos tem
deixado o país e vivem em Londres, Berlim, Barcelona ou Paris. Somos
europeus porque sabemos muito bem que só a nivel europeu se pode criar
uma nova forma política adaptada à riqueza da inteligência coletiva. Só
uma insurreição européia pode abrir um novo horizonte à sociedade
italiana.
Ref. http://bocadomangue.wordpress.com/2011/01/30/%E2%80%9Ca-sensibilidade-e-hoje-o-campo-de-batalha-politico%E2%80%9D/